sábado, 20 de junho de 2009

Velha Infância III - As Flores de Raimunda

Noite passada tive sérios problemas com a malícia da atmosfera dos navegantes. A linda melodia de violino que realça a cor dos olhos da mulher enquanto encanta o barman na festa não se associa ao canto da torcida no Morumbi, ao samba, mas ambas as festanças proporcionam o mesmo gemido entre os corpos, a mesma freqüência entre os sons, o mesmo segundo que levanta os pêlos do braço gelado... Me perguntaram se eu estava falando de amor, ressonância, ou coincidências. Respondi:

- Decifrem.

Mas vamos ao que interessa: noite passada. Antes de seguir rumo como combinado com a Anne, esbarrei com Raimunda numa floricultura:

- Comprando flores? - Perguntei.
- Sim.
- Eu sempre soube que você era o 'macho' da relação, Raimundinha.
- Não é difícil perceber... Mas essas flores não são pro Rodrigo, são para mim.

E enquanto ela se perdeu pelo ambiente à procura das flores perfeitas, a balconista se dirigiu até mim:

- Ela vem à loja todos os dias. Mesmo que não seja para comprar, ela vem e passa horas entre as flores até encontrar uma especial.

Era curioso. Eu desconhecia essa paixão por flores da Raimunda, acho que todos se espantariam se soubessem.

- É, estou em dúvida no que devo levar... Flores do mal, flores da morte, flores da mente? Já sei, Íris. Por favor, moça, vou levar essas Íris. Flores da indecisão, eis o meu dia.

Então pude compreender o enigma de Raimunda. Talvez ela nem percebesse, mas procura nas flores os temas de sua vida, as respostas, as certezas, o escudo invisível. Enquanto que as flores de plástico não morrem, as flores de Raimunda à constroem. Enquanto meu refúgio se concentra num estúdio, a calma de porra-louca durona e marrenta se revela numa floricultura.

Em seguida tomamos nossos rumos e fui de encontro à Anne, levei uma margarida. Contei a ela a semana tensa que tive no escritório. Sobretudo, falei do telefonema, das horas no telefone com quem não devia.
E o dever era o termo que eu conhecia muito bem. O que se deve ou não é fato que deixo de lado quando pinta sem força, sem raciocínio, sem pretensão. E se é dever do que estamos falando, que todos vejam. Se não dever, não deva. Não tenho dívidas com ninguém, me divido, mas nunca me intimido. Eu falo baixinho. E foi assim que falamos no telefone, baixinho, meigo, ainda que o tom galanteador não me escapasse dos sensores que me arrepiavam os pêlos do braço. Sedutor. Nesse exato momento da conversa meu namorado entrou no Lanterna - o bar - e sentou-se ao meu lado, sorrindo, me beijou e perguntou qual era o número do meu telefone novo (sendo que já fazia dois meses que o número era novo) e logo foi encontrar o Marvin e o Otto que estavam perdidos na rua de trás.

Ouvindo Beetlebum, do Blur, em casa, diante dessa tela de computador fiquei pensando: como um convite ao cinema de um comprometido dirigido à um amigo pode causar tanto euforismo enquanto que uma ligação tão íntima com um "indevido" pode ser tão natural, lançando o perfume de um clima que se esconde atrás de sua própria consciência de fato indevido? Este clima não se deve, mas deve à atração das flores invisíveis que, por debaixo dos panos, revelam a maior das atrações.

A traição de Raimunda não aparece na omissão de suas horas acorrentadas às flores, mas sim, se revela na sua incapacidade de declarar à quem deveria perceber, por si só, por maturidade, por gosto, por jogo de sedução, o dever e o papel de seduzi-la tal como as flores à seduz.

Na minha história, a mulher que encanta o barman é a balconista da floricultura que vende flores pra Raimunda que namora o violinista que nesse exato momento está no Morumbi gritando por um gol.

4 comentários:

Eric Brandão disse...

Absolutamente literário. A poesia que vive em você se confunde com uma juventude que vai se lapidando mais e mais cada vez que você some por um mês ou dois, e reaparece na minha tela, para encher outra vez o meu universo de sangue quente.

Bjs, parceira!

Bruh disse...

aah tava com saudades disso *-*

Prachedes disse...

Você tem a magia da escrita, sabia?

Fabio Manzano disse...

Roberta, lindo!!!
Me orgulho de ter uma amiga assim, sua escrita envolve e embriaga como uma droga, É VICIANTE. Tem o seu ritmo de vida, como você realmente é.

Um sincero beijo,
Fabio Manzano